Património
CONCURSO LITERÁRIO
PROFESSORA
ROSINDA DE OLIVEIRA
2ª edição
2019/20
FÁTIMA ALVES
VENCEDORA 1º PRÉMIO
4º ESCALÃO
apoio
VENCEDORES
1º ESCALÃO
1º PRÉMIO . BÁRBARA FERREIRA, O Início do ano letivo assombrado
2º ESCALÃO
MENÇÃO HONROSA . SARA OLIVEIRA, Teimosia do Destino
4º ESCALÃO
1º PRÉMIO . FÁTIMA ALVES, Basta um fósforo
2º PRÉMIO . ANA BELA VALENTE, Solidão
3º PRÉMIO . CARLOS SILVA, Manifesto Anti-divindades mundanas
OS TEXTOS VENCEDORES
BÁRBARA FERREIRA
1º PRÉMIO . 1º ESCALÃO
O Início de Ano Letivo Assombrado
Uma escola, bem longe daqui, é muito popular porque tem uma lenda aterrorizante. Uma história assustadora e assombrada de que já ouvi falar e que vou agora contar-vos:
Numa noite escura, de lua cheia, em 2009, um grupo de cinco amigos entrou na escola com o objetivo de a assaltar. Levaram sacos, máscaras, um pote com dinamite, cobras, aranhas e lasers. Essa escola tinha armadilhas, mas felizmente os ladrões não sabiam!
Havia uma corda no chão que, se fosse pisada, acionava o alarme: as paredes começavam a aproximar-se, as portas e as janelas trancavam-se, também havia muitos quebra-cabeças, formigas venenosas e pulgas, nas paredes e no chão, bem como morcegos no teto, que matavam as pessoas com apenas uma dentada, e facas mágicas nas gavetas.
Nessa noite, quando eles entraram na escola, como eram espertos, viram logo as formigas, as pulgas e os morcegos. Com a dinamite, conseguiram matá-los a todos. Mas não sabiam das outras armadilhas. Então, quando a Sofia, uma das amigas do grupo de ladrões, foi à cantina para roubar, passados uns segundos, gritou:
- Ahhhhhh!
Quando os amigos chegaram ao pé dela, viram-na morta, com os cabelos para cima, com os olhos a deitarem sangue preto e com a cabeça aberta. Desnorteados, porque perderam a Sofia, os cinco amigos ainda pensaram:
- Esta escola deve ter… óleo no chão.
-Que burros que estamos a ser! – exclamou o Pedro, uns segundos depois de pensarem (feitos doidos) que havia óleo no chão.
- Então o que achas que é? – perguntou o Rodrigo, que estava habituado a situações estranhas, porque tinha uma casa assombrada.
- Eu acho que o problema é que há muitos quebra-cabeças. – respondeu o Pedro.
-Então, temos de ter muito cuidado. – concluiu a Leonor.
Os cinco amigos continuaram com o seu plano mas, infelizmente, já não contavam com a mais inteligente, que era a Sofia. Foi nessa altura que o Pedro pisou as cordas, a porta trancou-se e as paredes começaram a aproximar-se. O Miguel, o aflito do grupo, começou a gritar:
- Aaah! Socorro!
- Tem calma! - aconselhou o Martim, o mais forte dos cinco.
- E agora, o que fazemos? – questionou o Pedro, para depois acrescentar – Já que perdemos a Sofia, temos de ser nós a ter uma ideia brilhante.
Passados uns minutos, quando as paredes já estavam a apenas um metro de distância uma da outra, pararam de repente. E depois recuaram. “Mas como?”, pensaram. E foi nesse momento que entraram uns polícias e prenderam-nos. A Sofia foi, mais tarde cremada, tal como era a sua vontade.
Então, resumindo e concluindo, a lenda é assim, mas não sei se é verdade. Pode ser só uma história assustadora de Halloween!
SARA OLIVEIRA
MENÇÃO HONROSA . 2º ESCALÃO
Teimosia do destino
Silhuetas dançando desajeitadamente no breu da noite, baloiçando loucamente devidoao efeito de álcool.
Movimentos inquietantemente não coincidentes com a música oriunda do velho mas competente disco de vinil.
Por ação de uns tantos copos de vinho, agora dançavam apaixonados, pensamentos apenas centrados na pureza e simplicidade do momento, rejeitando a entrada no cérebro de qualquer tipo de problemas ou preocupações. Naquele momento, a individualidade desaparecia e tornavam-se num só, corpos unidos pela mais potente cola deste mundo, o amor.
Momentos estes que, mais tarde, nada mais seriam do que memórias na cabeça de Bruno e Marta. Porque assim ditara o destino e , quanto a este, nada se pode fazer, não há forma de o contrariar ou alterar.
Mas , indo direta ao assunto, estas duas personagens partilhavam de um amor loucamente doentio um pelo outro, desesperavam o dia todo na ânsia de , ao final de um dia árduo de trabalho, poderem regressar aos braços um do outro. Esta relação já durava
5 anos e tudo corria bem , tinham a vida toda pela frente, sendo ambos jovens na casa dos 25 anos.
No entanto, tal como tudo, o que é bom acaba depressa e, dessa forma, esta história de amor não poderia esperar outra coisa senão um ponto final. Mas daqueles pontos finais gordos que impõem um fim forçoso, que não pode ser acompanhado de nenhum
parágrafo.
Porém, as razões deste desfecho ultrapassam as típicas traições. Trata-se um motivo mais complexo e não entendido por cabeças simplistas.
Depois de cinco anos de entrega, confiança e alegria , Bruno e Marta consideravam-se preparados para uma nova etapa das suas vidas, o casamento. Há muito tempo que esperavam por aquele momento. Casariam pela igreja, obviamente, como católicos dedicados que eram, e , depois disso, nada mais que uma simples cerimónia, isenta de extravagância ou complexidade, apenas com os familiares mais significativos.
Seria o dia em que oficializavam a sua relação. O dia em que a doutrina do matrimónio os juntava de forma mais intensa e poderosa. O dia em que passariam a partilhar mais do que o amor ou que a casa, em que passariam a partilhar também o apelido. O dia em que
passariam de meros namorados a imponentes marido e mulher.
Não seria apenas mais um dia, seria o dia. O dia que marcava o início do resto das suas vidas. E o tão ambicionado dia chegou, pacífica e liberalmente. Casaram no dia em que se conheceram- num lindo 20 de maio, com a Primavera a despedir-se o Verão a aquecer
para tomar o seu turno . No entanto, por obra do destino ou até de Deus, o tempo não esteve do lado dos noivos, como se adivinhasse o desfecho trágico desta história e se quisesse juntar à festa. Dessa forma, chorou enormes lágrimas salgadas que caíram
violentamente sobre os carros estacionados dos convidados.
Dentro da igreja, ocorria o casamento de forma serena. O padre declamava as palavras tantas vezes repetidas, já gastas e sem sabor. Um casamento tão insignificante para o resto do mundo, mas tão crucial para aquelas duas almas apaixonadas.
Marta olhava Bruno e maravilhava mais uma vez o homem ímpar e maravilhoso que a encarava. Deixou-se ficar nesta contemplação durante um longo período de tempo quando, voltando a si mesma, desviou o olhar dele e poisou-o nos convidados. Algo não estava certo. Vozes de preocupação e alarido ecoavam pela grandiosa igreja.
De repente, avistou alguém caído no chão, para onde se estendiam todos os olhares.
Reconheceu rapidamente a sua pobre mãe, pálida e inconsciente. Estacou por momentos, impávida e sem conseguir gesticular nenhuma palavra.
Depois de um longo período de reação e conseguindo trazer as emoções de volta a si mesma, correu desesperadamente em direção a ela e ordenou, entre soluços, que chamassem a ambulância. Esta chegou pouco tempo depois trazendo a Marta as piores e mais indesejáveis notícias. A sua mãe tinha tido um ataque cardíaco que fora fatal.
Marta caiu debilmente sobre os joelhos e gritou e chorou de forma estridente e dolorosa a morte da sua adorada mãe. Bruno tentava inutilmente acalmá-la e abraçava-a com força, como se se a largasse, ela estilhar-se ia em pedaços ali à sua frente. E assim ficaram, momentos intermináveis carregados de mágoa e amargura.
Já dois meses se tinham passado desde o infeliz acontecimento e ainda se avistavam lágrimas secas na cara de Marta. No entanto, já se encontrava menos pesada e melancólica e isso fez com que, sacudindo os momentos de sofrimento vividos para trás das costas,
decidisse tomar uma decisão em prol de um futuro melhor. Chamou Bruno e comunicou-lhe que tinha algo importante para lhe dizer. Acrescentou, entre lágrimas, que o amava imenso e que relembrava com carinho todos os momentos passados com ele, mas que tinha que tomar uma decisão que visasse um melhor futuro para si própria. Concluiu, informando-o que achava melhor para os dois afastarem-se um do outro.
E motivos? Pois, esses são completamente desprovidos de razão e consistência.
Marta, sendo uma pessoa crente no poder do destino e acreditando que tudo acontece por uma específica razão , compreendeu a morte de sua mãe como um sinal ou aviso enviado por Deus de que ela e Bruno não se poderiam amar. Receosa de futuros avisos por parte do Ele Todo Poderoso, Marta decidiu não arriscar e preferiu perder a sua alma gémea a poder sofrer consequências inimagináveis. Tudo por causa da teimosia de Deus que, como uma criança brinca com bonecas e bonecos e estabelece determinados laços e uniões, não
lhe agradou a junção destas duas aves raras e então, de forma mimada e inconsciente , decidiu tirar a vida a uma pessoa inocente.
Mas, adiante. Como se pode esperar, Bruno ficou incrédulo com a justificação da sua ex-quase-noiva e, ainda hoje, se debate confusamente na procura de um porquê mais consistente do que o apresentado por Marta.
E agora continuam as suas vidas, um para cada lado, separados pela crueldade do destino que, teimosa e espantosamente , conseguiu separar dois potentes ímanes.
Ambos saudosos da companhia , do toque, do perfume um do outro.
Ambos revivem diariamente, entre sorrisos e lágrimas, os tempos em que disfrutavam da presença um do outro, a paragem do tempo sucedida cada vez que se uniam num só e os momentos de alegria, tristeza, bebedeira e loucura passados em harmonia.
Cada um no seu canto, com vidas completamente diferentes, carreiras completamente diferentes, famílias completamente diferentes, mas ambos troteando a mesma canção do disco de vinil.
FÁTIMA ALVES
1º PRÉMIO . 4º ESCALÃO
Basta um fósforo
À volta daquela lâmpada moravam os mosquitos de sempre. Eles olhavam, hipnotizados, para a luz que surgia quando o Sr. Condesso ligava o interruptor, já há muito partido. Mas não tão partido quanto estava o seu coração. Enquanto filosofava sobre esta magnética atração dos mosquitos pela sua lâmpada de quarto, pensava na sorte que tinha em viver sozinho. Era livre para decidir a que horas podia chorar. E eram 22h34 quando decidiu. Mas não ficou por ali. Nunca se chora tudo, não é? Vai-se chorando. Maldizia os seus vazios, medos, incertezas e uma espécie de pré-morte em lista de espera. Vai-se morrendo. O Sr. Condesso tinha 58 anos, mas dizia que já tinha as noites contadas. Tinha de andar sempre a correr. Vai-se andando. Corria de casa para o trabalho (numa empresa que comercializava lâmpadas LED), do trabalho para o voluntariado na Casa dos Pobres, da Casa dos Pobres para os ensaios do coro e corria para casa, novamente, para abrir a porta à D. Esmerinda, que vinha trazer-lhe fruta da época. Por fim, corria para dentro do seu quarto, da sua cama, para correr para dentro de um livro e depois de um sonho qualquer. De que é que fugia? Vai-se fugindo.
Na Casa dos Pobres, onde tantos pagam o aluguer de uma cadeira, não há tempo para parar, que há muitos banhos para dar e bocas para alimentar. O Sr. Condesso parava. E era o único momento do dia em que não corria. Ele já tinha ouvido as mesmas histórias, tantas vezes quanto as suas visitas. E eram muitas. Nunca percebeu porque é que só desculpávamos as crianças por quererem ver o Rei Leão mais de 100 vezes. O Sr. Condesso também era pintor. Quando chegava àquela Casa, pintava cenários a verde e a amarelo. Esbatia a solidão, trazia luz e ondulava vidas. Mas, quando saía de lá, tinha a sensação de que o vento assobiava na porta e com ele levava a tela. Enquanto corria para a casa onde dormia, pensava se as suas visitas valeriam, realmente, a pena. No fim de contas, a água continua a correr na mesma direção do rio. E corria com leveza, em contraste com a profundidade do seu ser.
Já em casa reparava na fruteira e na rapidez com que as coisas apodreciam dentro da sua cozinha. Em conversa consigo mesmo, perguntava se valia a pena continuar a aceitar a fruta da D. Esmerinda, se a maioria iria apodrecer antes de ser comida. Fugiu da pergunta e todos os dias lhe abria a porta pela mesma hora.
Enquanto olhava para a pauta, as notas pareciam dançar e, por isso, desviou a sua atenção e os seus olhos caíram nos caracóis brancos da D. Maria, nos óculos da Sofia, no beicinho da Joana enquanto cantava a nota “dó” e na forma como a voz do Joaquim abraçava toda a gente. Aquele coro era composto por cerca de 40 vozes e o que o Sr. Condesso mais gostava era de ouvi-las todas juntas, embrulhadas, confundidas, harmoniosamente desencontradas. Enquanto fitava o maestro perguntava: – “Uma voz faz a diferença num coro com 40 pessoas? Se eu faltar, o coro não acaba. São tantas as vozes…”.
“Bom dia” – disse o Sr. Condesso com um sorriso alargado. Era sempre assim. Distribuía sorrisos pela receção, pelos colegas de trabalho, até chegar ao seu gabinete. Há dias que acordava como se tivesse 20 anos. Nesses dias acordava mais cedo. Havia muito que fazer. Um mundo inteiro para mudar. Tinha a sensação de rodopiar o seu corpo esguio por todos os cantos da empresa. Sabia que aquele sorriso importava. Era ele que mudava a direção dos projectos a aprovar em reuniões. Mas à hora de almoço, às vezes, duvidava até da existência do sol. Olhou para os campos que se vislumbravam lá fora e pensou: E, se o sorriso tirasse férias por uns dias? Quem sabe até uma licença sem vencimento? A empresa continuaria a exportar e a importar lâmpadas como sempre? Seria possível fazer uma proporção matemática de sorrisos por número de lâmpadas vendidas? Como que a ler-lhe as angústias, o colega Manel desabafou: – “Isto cada vez está pior. Não nos pagam o que devem e devem muito. Acho que, mais dia menos dia, vou-me embora daqui. Também, que diferença fazemos? Ninguém é insubstituível. Vem aí um a seguir e faz o mesmo que nós e por muito menos”.
Era Domingo e, ao fim de semana, já não se podia fugir muito. Havia muito tempo para fazer as coisas. Só o cheiro a alfazema do pátio e a marmelada a chegar ao ponto, no tacho, para roubarem as interrogações do seu pensamento. Mas não o suficiente. Às 21h já anoitecera e decidiu procurar os pirilampos no parque. Saiu de casa como quem caminha sempre com gosto. Mas não naquele dia. A dúvida assolava cada passo em direção ao parque. Encontrou um pirilampo e, enquanto admirava as raízes de um embondeiro, concluiu, em voz alta: “para um homem é também fundamental aquilo que não se é, ou seja, a capacidade de se tornar ou a possibilidade de ser outra coisa. A nossa noção de liberdade aproxima-se desta ideia de se poder ser aquilo que não se é. Amanhã serei outro. Mas só amanhã. Hoje, não”.
E foi assim que acordou naquele dia. Sentiu que tinha o peso de muitos anos. Defraudadas as suas expectativas sobre a vida, o seu olhar fugia de todos os que encontrava no caminho até ao seu gabinete. Mas ele decidiu, finalmente, não fugir mais de si mesmo e das dúvidas que o sufocavam. E suspirava enquanto dizia: – “mais lâmpada, menos lâmpada, tanto faz”. E não sorriu naquele dia. A ausência daquele sorriso provocou um cataclismo de má disposição. Chamaram-se os “bobos da corte” da empresa, compraram-se donuts e bolas de Berlim para animar a equipa. Ninguém sabia bem o que faltava, mas faltava tudo.
Não compareceu na Casa dos Pobres à hora combinada. O dia continuou com as rotinas de sempre. Novos voluntários apareceram. Mas poucos eram os que queriam ouvir a mesma história mais de 100 vezes e era isso que faltava. Temos comida, banho, jogamos às cartas. Mas sentia-se a falta. Tudo era feito, mas com menos amor.
Também faltou ao ensaio do coro. Apenas duas pessoas perguntaram: – “onde está o Condesso?” Os coralistas cantaram as músicas de sempre. Todos sabiam as letras e o tom de cor, mas a sala não ficava tão cheia. Faltava uma voz. Mas habituamo-nos às ausências. E continuaram.
A D. Esmerinda bateu, bateu e bateu, outra vez, à porta. E nada. Só um saco de fruta à porta e um par de beijos por dar. Ao terceiro dia, ela decidiu ir entregar a fruta a outra pessoa. O cheiro da casa era diferente e o o sorriso também. Habituou-se como nos habituamos ao frio no Inverno. Com mais roupa.
O Sr. Condesso ficou em casa, o dia todo, a pensar que novos poemas poderia inventar? Ele queria muito fazer um poema naquele dia porque ouviu dizer na internet que “o poema muda o sentido do caminho”. Após uma prolongada sesta, aquilo que lera num dos seus empilhados livros de cabeceira, quase que começara a fazer sentido. E assim, após várias mensagens de voice-mail, decidiu dar uma oportunidade às rotinas de sempre, fintar a solidão e aceitar o convite dos seus colegas de empresa para a Passagem de Ano, mesmo que o tempo continuasse a fazer cara feia. Estavam todos no salão de festas quando, subitamente, a luz falhou e, naquela casa, nem uma vela perfumada, nem um isqueiro esquecido num bolso de um fumador, nem uma luz de um candeeiro de rua. Apenas um fósforo restava numa caixa, já velha, em cima da lareira. E ele soube, naquele momento, que bastou um fósforo para iluminar uma sala inteira
ANA BELA VALENTE
2º PRÉMIO . 4º ESCALÃO
Solidão.
São duas da manhã de um dia qualquer que eu não sei qual é e sinto-me terrivelmente mal, igual a todos os dias desde que me lembro existir. Viro-me para o lado. Acabei de acordar e a única coisa em que me consigo focar é na mesinha de cabeceira baixa e velha à minha esquerda, com um papel delicadamente disposto ao pormenor.” …o coração aperta ao pensar nisso…”. Não consigo ler o resto e não me lembro de nada, só da sensação ao sentir a minha mão quase involuntariamente escrever esse desabafo uns dias antes. O meu coração acelera muito muito MUITO, como se fosse saltar do peito ou explodir ou evaporar. Levanto-me rapidamente da cama. Parece que fui empurrada porque sinto uma certa inércia no meu corpo. Saio do quarto e não reconheço nada, nem o meu próprio reflexo quando me olho no espelho do corredor. O espelho é comprido, sem fim, e a minha imagem prolonga-se infinitamente, como se bem lá no fundo eu ainda continuasse a existir ou como se mais fundo ainda eu me desintegrasse. Quem sou? A inércia do meu corpo aumenta gradualmente com o passar dos segundos. Penso no tempo. A senhoria ainda há uns dias pendurou aqui um relógio. A sua delicadeza fascina-me, a maneira como toca nas coisas e as torna leves. “Pouca coisa me fascina hoje em dia, sabe?”, lembro-me de a ver sorrir quando me ouviu dizê-lo. O relógio perdeu os ponteiros, parece muito mais antigo do que me lembrava. Perdi-me nos meus pensamentos… O que é que se passa? Ando lentamente e não me ouço respirar, parece que…. Sigo um rasto invisível, ténue, completamente impercetível, na verdade nem sei se lhe chamaria um rasto, mas sigo-o. Vou dar a um quarto pequeniníssimo no fundo do corredor, onde o espelho provavelmente encontraria o seu fim. Existo ou desintegro- me? Não sei como vim aqui parar, não há porta, teria sido impossível passar por onde quer que fosse, é um quarto fechado. Que sítio é este? Devia ligar à senhoria. Ouço a minha voz mas os meu lábios não se mexem. De repente fiquei muda. Tento gritar.
Ouço-me outra vez mas os meus lábios continuam imóveis. O quarto fica cada vez mais pequeno e eu suo incontrolavelmente. Tento chegar ao telemóvel, mas não o tenho comigo, e mesmo que tivesse, quem me vinha ajudar? A senhoria deve estar ocupada e não tenho mais ninguém. Nunca tive mais ninguém. Passo a mão na testa numa tentativa inútil de limpar o líquido que sai dos meus poros. Não sinto a minha pele a tocar-se, apesar de saber que a mão e a testa se tocam. O meu corpo deixou de existir.
Ouço ecoar a minha voz novamente no quarto: “…é como assistir progressivamente ao
próprio…”. A minha voz? Sinto-me encurralada, e claustrofóbica GRITO MUITO ALTO, mesmo sem conseguir, mesmo sem voz, e o quarto começa a desaparecer. Sinto o chão derreter sob o meu corpo, deitado inutilmente nesta maldita caixa gélida. O meu coração deixa de bater e sinto-me cair. Parece que estou num túnel, mas não é um túnel, não é nada, não tem limites, não sinto paredes nenhumas, nem a banal sensação de espaço. Caio no vazio (se se poderá chamar a isto vazio sequer). Sinto que estou aqui há dias. Quanto tempo passou? Penso em gritar, mas penso em vão, afinal para que vou gritar? Por quem? Com que voz? Com que peito? Finalmente sou parada pelo chão, e começo a ser sugada por ele, muito devagarinho, enquanto o ouço sussurrar baixinho: “…ao próprio funeral…”. O meu corpo fica submerso; as costas, os cantos da barriga, os pés, o pescoço, as bochechas. O meu corpo, pálido e sem vida, a ser enterrado. Onde estou? … Sufoco de vez repentinamente, o ar é-me extraído dos pulmões já tão frágeis e eu deixo de existir. Sou nada. Como posso ser nada? Acordo do outro lado, onde estaria quem gritou ainda há pouco, uma segunda pessoa que não sendo eu sou tão eu como ainda há pouco o era. Escorre-me uma lágrima pelo rosto enquanto recupero todos os meus sentidos. Em cima do monte de terra que ainda há pouco me engoliu está um papel delicadamente disposto ao pormenor. “É como assistir progressivamente ao próprio funeral. O coração aperta ao pensar nisso… que já morremos de alguma maneira.”. Não tenho ninguém, nem a mim própria.
CARLOS SILVA
3º PRÉMIO . 4º ESCALÃO
Manifesto anti-divindades mundanas
Dei-te tudo! E ao dar-te tudo, perdi-me! Perdi-te! Perdemo-nos os dois num mundo imenso de solidão e tristeza. Ficámos ambos atrapados na sepultura da nossa dor, sem poder fugir, sem possibilidade de escapar, condenados à eternidade de ser a dolorosa ferida que os deuses, por maldade e mesquinhez, nos causaram e subjugaram pela terra quente que nos pare e receberá; também pelos céus frios que nos miram desde cima com desdém e arrogância e nos cuspirão para o inferno do vazio e do esquecimento.
Somos a ferida que não sara nunca e dói sempre! Somos o rosto da fome e da infelicidade e do nada! Somos a face da miséria que essas supostas divindades nos causaram pelo tempo, pela vida e pela morte; somos a cara que os deuses usurparam para cunhar a sua moeda de desprezo prepotente e que, ingloriamente, venderam à humanidade, numa manifestação magnânima do seu poder absoluto sobre os Homens, da sua grandeza extrema e dominante sobre o mundo que menosprezam e execram… Mas somos também, por virtude e milagre, a escarra viscosa e nojenta que escorre lentamente pela fronte dos deuses que nos maltratam como um sinal de tumulto e revolta; somos a antítese da divindade que esses deuses mundanos alegam possuir; somos o eterno paradoxo da vida e da morte que concede verdadeira grandeza à Humanidade e valor à sua finitude. Todavia, o nosso espírito alimenta-se de contradições e odiamo-los e adoramo-los apesar das nossas insurreições; e tememo-los e respeitamo-los pesem as angústias que nos causam; e pecamos e cumprimos os preceitos que nos exigem mesmo que não lhes reconheçamos a condição de deuses. E damos-lhes tudo e perdemo-nos… Perdemo-nos sempre! Perdemos sempre!
Não têm, porém, nem grandeza nem honra nem valia alguma! Se tivessem dignidade recusariam os sacrifícios humanos que lhes são feitos; se tivessem valores autoextinguir-se-iam para não mais criarem desumanidade no seio de um mundo já imperfeito; se fossem seres e deuses minimamente éticos e morais suicidar-se-iam para não ser mais o tormento sem razão que tudo exige aos Homens… tudo exige e nada lhes dá, tudo exige e tudo lhes tira! Os deuses são tão pequenos quanto os átomos, ou mais pequenos ainda; tão abjetos quanto os assassinos e os violadores e os ladrões e os pedófilos, quiçá mais, seguramente muito mais. E eu, ciente da sua condição desregrada e imunda, juro-lhes vingança e choro; condeno-os a viver na eterna mesquinhez de não conhecer a pureza do espírito humano e choro; rogo-lhes pragas e juro-lhes castigos para que nunca vejam a genuína grandeza divina e choro.
E choro por não existirem deuses! Não sendo ateu nem ar religioso, nego a existência de divindades e entidades supremas. Mas não posso nunca odiar o que não existe e choro. E choro a minha tristeza, a minha ferida, a minha mágoa… Choro também as tuas dores e aceito a existência dos deuses: deuses grandes ou pequenos, omnipotentes ou limitados nas suas capacidades; pouco interessa a sua dimensão e o seu poder. Os deuses existem e são seres mundanos; os deuses existem e são seres desprezíveis; os deuses existem e eu odeio-os! E choro!
Choro porque esses deuses não são mais que seres ébrios e vis que se excitam e masturbam com a mágoa humana, com as feridas que causaram na humanidade, que me causaram a mim e a ti e que não sabemos esquecer nem podemos perdoar. Odeio-os e choro a minha dor; detesto-os e choro a tua dor também como se fosse minha; choro a tua dor porque também são minhas as feridas que os deuses te causaram!
E olho-as! Vejo as feridas marcadas na pele de ambos, a minha ainda suave por ser jovem, a tua já enrugada pela experiência, e recordo-te; e olho-te… e choro-te! Vejo nos teus olhos baços a tristeza e o pranto que já não podes chorar. Vejo no teu olhar vazio a miséria e a fome! E choro! E tu também choras comigo! E o sal das nossas lágrimas, as minhas e as tuas, provoca um ardor intenso nas feridas do espírito, converte-as em chagas rubras e sangrentas para que o mundo inteiro veja a minha dor, perceba o teu sofrimento e conheça a condena que nos foi imposta pelos deuses, por essa heregíssima trindade do tempo, do medo e do orgulho!
E incito o universo que os deuses dominam ao ódio e à violência. Quero castiga-los e quero que sofram! Quero que morram e sintam dor equivalente à que me causaram, dor semelhante à morte porque vivo como se estivesse morto, sem alegria, sem prazer, sem vontade, sem porquê! Então, procuro ignorá-los, para lhes trespassar com a estaca da indiferença o coração da vaidade e ufania de quem tem uma perceção de autovalía que supera a realidade, quem pensa ser mais do que é. E choro!
Choro porque ainda recordo com vivacidade e horror o momento em que foram os deuses que me perfuraram a pele com a lâmina afiada da maldade; quando o tempo me provocou saudades, o medo me causou insónias e o orgulho não permitiu que chorasse por ti e contigo. Agora que os ignoro, já posso chorar, mas só me permite o espírito que os deuses em mim infundiram que o faça quando estou sozinho, nessas muitas horas solitárias sem dormir porque as saudades bradam o teu nome no meu ouvido e proíbem o sono e o descanso, forçando-me a reviver o momento em que te vi deitado entre três paredes de madeira e eu mesmo fechando a porta dessa casa que será tua até não seres mais que ossos e pó e memória, como se cravasse um punhal no teu peito e fosse eu quem sangrasse esse sangue vazio de espírito e de vida.
E choro na minha solidão! Choro na minha reclusão voluntária porque tenho medo de ver os deuses nos olhos de outrem: os deuses que o meu orgulho diz não existirem, mas que me atormentam o espírito apodrecido pelo sofrimento; os deuses cuja existência nego, mas que me corrompem e ferem e matam pedaço a pedaço; os deuses que ignoro e desprezo, mas que fizeram que perdesse o presente e o futuro e converteram o passado numa densa névoa no céu que me enegrece. E odeio os deuses e choro!
Mas ergo-me: levanto-me do pó que me cobre o corpo e suja a pele. Na imundície do meu rosto que os olhos não veem, limpo o sangue que o meu espírito chorou; enxaguo as lágrimas de sal e suor que a vida me negou, mas que a morte, sempre materna e misericordiosa, me concedeu! E aprendo que o amor e a bondade, a honra e a saudade são a negação da negação divina que são o medo, o orgulho e o tempo; e percebo que ainda amo quem foi bom e honro quem me provoca uma saudade imensa de tudo o que em mim era vida.
E ainda sinto! Ainda vejo sentido nos meus passos que me levam à tua sepultura. E sei que estou vivo! Apesar de tudo, estou vivo! Na tua morte, morreu um pedaço do meu espírito, mas o que ainda me sobra é também espírito e eu estou inteiramente nele… Tu estás inteiramente nele e não há espaço para mais divindades que não sejam o Homem que morreu e que deixa saudades; não há outro Deus que não o Homem cuja ausência marca mais que a presença.
Agora, já não odeio os deuses! Simplesmente nego a existência do tempo, do medo e do orgulho como entidades divinas; afirmo e reafirmo a sua existência como seres mundanos que eu mesmo criei para serem o suplício eterno de quem viveu como se estivesse morto. Agora, vivo na eternidade que me ofereceu as minhas primeiras certezas. Não encontrei, porém, felicidade, mas mais tristeza e mágoa porque sempre existiram os deuses e eu odiei-os e neguei-os! E ao negá-los neguei também a vida e, agora, nem o mundo inteiro é suficiente para pagar esta dívida de amor e saudade que lhe devo. Neguei-te a ti! E choro a finitude da vida na solidão da tua sepultura. E choro porque te dei tudo e o tudo teve equivalência ao nada… ao nada em que me converti!